sexta-feira, 8 de julho de 2011

O menino, o marca-páginas e o retorno ao pé de manga




Marcelinho era um colecionador de minhocas. Ele não tinha um pote ou coisa assim. Achava melhor guardá-las em seu próprio quintal. Encontrá-las sempre que cavocava a terra em qualquer parte do quintal era um mistério que o encantava. Também achava divertido o modo como elas se enrolavam em seu dedo quando ele as segurava. Certa vez, sem querer, ele cortou uma ao meio com sua colher de escavação. A princípio, ficou admirado pensando que quando isso acontecia, elas de multiplicavam. Mas, logo percebeu que as ‘duas’ minhocas paravam de se mexer depois de um tempo. É que elas morriam, então, ele entendeu que jamais deveria cortar uma minhoca ao meio.

Ele também ouviu dizer que orações eram conversas com Deus. Desde então, fazia as suas. Nelas, contava sobre como não gostava de quando sua mãe preparava legumes pra comer no almoço e do quanto ficava chateado quando o Marquinhos, o Martelo, um gordinho, valentão de 9 anos lá da sua escola, o chamava de Mamô (abreviação de magrela-molenga). Também dizia do quanto gostava de fazer bolhas de shampoo durante o banho, apesar do gosto ruim de sabão que ficava na boca. Falava de seus irmãos e da falta que sentia do avô, o S'eu Mané. E sempre que seu pai atrasava em chegar do trabalho, também orava. É que a chuva caia sem dó naquelas bandas e ele sabia que isso angustiava sua mãe, que dizia que a estrada virava caminho traiçoeiro.

Marcelinho passava um bom tempo assim, em conversa com Deus. Nem sempre cruzava os dedos das mãos ou ficava de joelhos. Geralmente, conversava no banho ou enquanto chupava manga direto do pé, na casa do Seu Euclides, enquanto esperava o Jorginho chegar da escola e eles logo irem bater uma bola no campinho, antes do anoitecer. Jogar bola no campinho durante a noite, aliás, era um perigo. Não por bandidagem ou algo assim. É que Dona Tita, a vizinha, tinha um amigo que tinha uns cavalos e, enquanto ele ia pra roça trabalhar na plantação dos legumes, ele os deixava pastando por lá. O que resultava em um gramado futebolístico repleto de bombas de estrume impossíveis de se enxergar no escuro.

Na adolescência, aprendeu violão. Cantava as canções que mais gostava e arriscava escrever algumas. Seu Euclides havia morrido e a casa fôra vendida. Já não tinha o pé de manga pras suas conversas. Aí, ele cantava orações em seu quarto ou no quintal, junto às minhocas.

Com o passar dos anos, vieram as mudanças. Coisas como o vestibular, o primeiro emprego, duas ou três namoradas, o casamento, os filhos e aquela loucura da jornada de trabalho. Marcelo, agora já homem crescido, vivia atolado com cursos e treinamentos, palestras, reuniões e jantares de negócios. Como a maioria das pessoas, suas atividades e rotina estavam sujeitas ao dinheiro e agenda. Nesse mundo moderno, nada se faz se a agenda não permite e o dinheiro não deixa e, quando mais ocupado se está, mais ocupado se fica.

E ele ia se virando. Não tinha mais tempo pro violão, pras cantorias e nem pras conversas que tinha com Deus. Ele havia desaprendido à fazê-las. É que as orações, em nós e de nós com Deus e pelo outros, também acabam atingidas pelos paradigmas desse tempo. Assim, elas deixam de existir em nós e pra nós como tempo de conversa com Deus pelo prazer de estar a sós com Ele, e como súplica pelos outros e por sí mesmo, na fé de que a paz que excede o entendimento toma o peito e enche o coração de todo aquele que ora e é tomado pela oração de tal modo que até seus suspiros tornam-se preces que excedem as horas. Quando é assim, elas viram programações e eventos, e a gente não as faz sem que nos sobre tempo na agenda. Ah, e o tempo, o tempo é dinheiro, por isso, orar custa caro.

Depois de muito tempo, revirando um armário em busca de um cartão com o telefone de um cliente, encontrou um daqueles marca-páginas - que lhe veio como consciência e convite -  com versículos que ganhou do seu filhinho, com o seguinte dizer: "Aquele que se torna como criança, no colo de Deus, encontra descanso." (Mateus 18:3)

Marcelo percebeu que orações, na verdade, não têm preço, e reaprendeu. Pegou seu violão e cantar-orou uma canção-oração, que dizia: "Como menino, te encontro de novo, numa conversa sincera, sentado à sombra de um pé de manga."

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Pensamentos sobre a oração e nós como desaprendizes do orar: O menino como nós, as minhocas como o encanto, naturalidade sincera e inocência; o pé de manga como oração, o violão como prazer no orar e o marca-páginas como o estalo do espírito para o meu e o seu coração, convidados a retornar às conversas com aquEle que nos fala até com o silêncio de uma minhoca.