quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Meu BisAvÔ MorReu Van GoGh!




A minha memória tem amnésia. Vive me tapeando quanto a realidade.
Tem dias que ela se esquece de parte das coisas, e outros em que se esquece de tudo. Tem dias que ela mistura coisas diferentes, me fazendo lembrar de uma versão que não aconteceu exatamente como me lembro. Isso acontece sempre comigo.

Por falar em memórias, esses dias me lembrei das tardes que passava com meu bisavô em uma cidadezinha do interior, onde morei por alguns anos. A cidade era pequena, e até hoje permanece assim, sem grandes mudanças. Lá, morávamos em uma casa onde pagávamos aluguel e tínhamos um carro vermelho, um Fiat 147 se não me engano. Lembro-me também de um cachorro que tive, o Pitoco. Até hoje não sei ao certo o que aconteceu com ele. A minha memória me faz crer que ele fugiu pela estrada, sem rumo ou com alguma cadela aventureira, e nunca mais voltou. Sempre tive essa sensação, mas talvez seja mais uma tapeação da minha mente em mim.

Ah, lembro-me também que tínhamos uma roça. Eu costumava ir pra lá sentada na carroceria da Fiorino branca do meu avô, segurando naquelas gradinhas pretas que ficam do lado de fora do vidro traseiro, o vento no cabelo e os olhos quase fechados por causa do vento e da terra que voava da estrada. Lá, eu olhava as plantações enquanto os adultos espalhavam veneno sobre elas pra matar as pestes. Ah, as memórias não são muitas de lá, mas são boas.

Lembro-me de passar tardes inteiras sentada na área dos fundos da casa de meus avós com o meu Bisavô. Durante essas tardes, não me lembro de fazermos nada além de ficarmos ali sentados. Éramos eu, ele, o chapéu e o cigarro, ambos de palha, e que cujo cigarro ele, com toda habilidade, enrolava. Eu pouco sei sobre ele. Não sei no que trabalhava, como havia sido sua vida, no que acreditava ou que músicas ouvia. Só sei das tardes sentados ali, juntos. Me lembro do silêncio. Sim, não há em mim qualquer lembrança sobre ele ter me contado alguma história, ou piada, ou ter resmungado alguma coisa. E também não me lembro de fazer alguma pergunta. Certamente nós conversamos algumas vezes, mas não me lembro de nada. Tanto que nem do tom da sua voz eu me recordo.

Ah, sentávamos cada um em uma cadeira, lado a lado, e eu o via preparar o fumo. Ele desenrolava a palha, colocava um punhado de um preparado verde e bege, que pra mim era mato, enrolava fininho, passava a língua na beira, fechava e acendia. Ali, tragava, enquanto o sol se punha no horizonte, entre as serras dos sítios e fazendas que podíamos ver do quintal.

Na sala da casa de meus avós havia um retrato num quadro. Era do meu bisavô, o Lando, o vô Lando. Sempre que olhava pro quadro, lembrava das tardes vendo-o preparar o fumo.

Alguns anos mais tarde, quase na adolescência, quando comecei a estudar a história da arte, descobri que o tal quadro na parede da sala da casa de meus avós era um auto-retrato de Van Gogh. Mas, como poderia? Impossível que fosse. Pois, por qual razão eu faria tal associação e creria assim por tanto tempo se o homem no retrato do quadro não fosse o meu bisavô? Impossível que eu pudesse confundir. As semelhanças eram tantas.
Desde então, tenho por certo que meu bisavô era pintor, o próprio Van Gogh, inclusive. rs

Sério. O chapéu, o cigarro de palha. E, a prova maior de todas: as cadeiras em que nos sentávamos. Sim, eram iguais àquela que Van Gogh, meu bisavô, pintou, cujo nome do quadro é “A cadeira”.
Por isso tanta habilidade com as mãos ao preparar o cigarro. O fumo era como um quadro, e seus dedos como pincéis. O cigarro era a sua obra de arte.


Acreditei durante a minha infância inteira que era ele naquele retrato. Em todo caso, sempre que me lembro dele, o imagino como no quadro.

Sem uma palavra sequer, foi o quadro que ele pintou pra mim.

Meu Bisavô morreu Van Gogh.



Um BeijO!