segunda-feira, 23 de novembro de 2009

O rastro do diabo

O clarão tomou os céus. Cruzou vindo do sul e sumiu. Crianças correram para suas casas, algumas mais ousadas, seguiam o rastro de fumaça na direção do horizonte. Corriam descalças, como fazem atrás das pipas entre telhados e vielas. Os religiosos faziam o sinal da cruz. Os céus anunciavam o fim. Um monstro invadia o planeta. Metade estrela, metade diabo. Deixava um rastro no céu. A cauda de suas maldades. A igrejinha encheu de fiéis, que preocupados com o tamanho da fila no confessionário, confessavam seus pecados uns aos outros. As famílias se reuniram. Maridos confessavam seus deslizes amorosos. Mães ninavam seus filhos até que eles pegassem no sono. O povo ficou aflito, coração apertado. Os bares fecharam mais cedo. O cabaré da Marineide se tornou o esconderijo das mulheres de saia curta, que se atreviam nas esquinas. Até o Seu Altevir, ateu convicto fez uma oração antes do seu último jantar. Uns estudantes, metidos a intelectuais discutiam as provas científicas do fim. Seria um novo Big Bang? No seminário protestante, na saída da cidade, houve uma palestra sobre o livro de Apocalipse e Pré-milenismo. Poucos compareceram. Só aqueles que temiam o que poderia suceder-lhes. Todos estavam preocupados. Coração na mão. Mãos no bolso. Bolsos molhados de suor.Dona Bernadete, a beata, confessou estar de olho no padre Joaquim desde 1939.O prefeito se enforcou e sob seu corpo pendurado, um bilhete que denunciava seu envolvimento com a mulher do vice.Os irmãos se abraçaram. Amigos telefonavam uns aos outros dizendo palavras de conforto. A Dona Benedita fez bolinhos de chuva e levou aos mendigos que ficavam debaixo da passarela do Benfica. Eles não entenderam o gesto carinhoso daquela assistente social até então rabugenta como o cão chupando manga. Itamar beijava o símbolo do Juventus Bom Jardim, seu time do coração. O vereador Tunico correu com a sua Kombi e entregou suas últimas cestas básicas e bujões de gás para os moradores do Serra do Sol, como prometido nas eleições do mês passado. Benê criou coragem e subiu a janela do sobrado da Aninha, menina rica que morava no centro da cidade, bateu na janela e roubou um beijo de Ana, que impactada com o romantismo do Benê, mecânico de corpo definido, que era pobre mas até que era bonitinho, tirou a blusa e o sutiã, para um susto daqueles, que fez Benê escorregar e quebrar o pé com a queda, lá embaixo. A sedução acabou quando os pais dela chamaram a polícia que demorou a atender, por estarem todos envolvidos numa partida de truco que valia uma caixa de cerveja. Só atenderam por ser uma chamada da família Barchelleto, tradicional na cidade, vindos do sul da Itália. Benê que não conseguiu correr com o pé quebrado, foi apanhando no chiqueirinho da viatura até à delegacia, onde foi acusado por tentativa de estupro, já que a moça estava sem as partes de cima. O delegado, entre um charuto e outro, proibiu o escrivão de digitar "parte de cima" e procurar um termo mais apropriado, e o escrivão cansado daquilo tudo, fingiu uma diarréia e no banheiro cheirou um pouco do pó que sobrava da apreensão dois dias antes, do Zé Melado, traficante do Morro da Pinguela, que vinha de umas viagens esquisitas à Bolívia, com uma novidade e tanto, coisa que por lá mascavam e por cá cafungavam.Escureceu e o rastro do diabo continuava no céu. Aquela marca da besta. O sinal do fim, agora tinha tons avermelhados, lembrando o inferno e o fogo que consome os pecadores. Do qual ninguém poderia fugir. Ninguém pegou no sono. A cidade estava muda. Enlutada. Todos pressentiam o fim. Alguns trêmulos.Peteca, o conhecido maluco, mijava nas calças e imitava avião. O delegado mandou abrir a porta da delegacia. Benê, Zé Melado e todos os criminosos foram soltos. O escrivão foi encontrado desmaiado no banheiro, com pó no nariz, numa possível overdose. O circo foi desmontado, o leão fugiu e devorou o domador. Zé Melado tratou de enterrar sua mercadoria. A cidadezinha virou de ponta cabeça no último dia da existência.No dia seguinte havia em todos uma perplexidade além das olheiras e caras amassadas, quando o Tonim Tropeço, menino da cidade vizinha, veio apitando em sua bicicleta e distribuiu de casa em casa o jornal que anunciava: O satélite russo Sputinik cortou o céu do Brasil na tarde de ontem.Gito.
Gito.