sexta-feira, 19 de setembro de 2008

LeiA - BeNtO

Da sacada se vê, tudo se vê.Da sacada nada se vê se não se quer enxergar.

BeNtO


O frio chegou sem avisos. O Vento que sopra e sopra gelado com uivos agudos tal lobo hipnotizado em lua cheia, virou a esquina e solavancou o rosto do menino descalço. Ele tremeu, rodopiou-se, enfiou as mãos por dentro da camiseta regata para fugir do que o fez tremer, mas com o queixo incontrolável, ele nada pôde fazer senão ajoelhar-se e abraçar as próprias pernas. Juntou, com um pé, as sandálias com a correia estourada por sob as pernas. Olhou ao redor. Nenhum outro som havia além do uivo do vento e o de sirenes ao longe, motores dos carros que passavam e o som da solidão. Olhou ao redor. E ainda que cercado de gente, distintas, tantas, mas que viviam em seu próprio mundo, passando de um lado pro outro, ainda que tropeçassem nele, não o viam. E ele, acostumado à solidão, era mais do que acostumado a se virar só. Inculpável, ele nada podia fazer a não ser aceitar que talvez nunca poderia conhecer seus pais, aliás, com o coração embrutecido pela dor, já não tinha dor, já não queria paternidade, sentimento comum de quem foi desmamado, desamado, rejeitado enquanto bebê e depositado com carinhoso repúdio numa caixinha de papelão em frente à sacada dum banco, naquela noite que garoava e parecia sem fim. Hoje, ainda menino, conhece as ruas do centro como os meninos dos filmes assistidos pelas vitrines das Lojas Cem conhecem seus robôs de brinquedo. O seu brinquedo é a imaginação e de tanto sofrer as injustiças e abusos, nas brincadeiras, ele ainda prefere ser o policial. Imaginando ser o Capitão Nascimento, ele se enfia pelas passagens apertadas entre uma rua e outra e pelos mocós correndo atrás de outros garotos que vivem como ele. Obstinado contra o crime imaginado, ele atira com seu revólver de mentira. Uma garrafa Pet serve de metralhadora. A polícia da imaginação aniquila a bandidagem. E atrasado por tanto correr, toma suas armas de trabalho e com balde, sabão e um rodo improvisado, limpa vidros de carros em troca de moedas. Ligeiro, ele conta na mente os poucos segundos do semáforo e divide o tempo de limpeza com um apelo de ajuda que geralmente termina em ofensa. Com os poucos trocados, consegue comprar um pão com mortadela. Uma moça desvia do menino, temerosa de que ele puxe sua bolsa. Isso nem passou pela cabeça, ainda que outras vezes ele o tenha feito. Na saída da padaria, impressiona-se com guarda-chuvas de chocolate, sua boca enche de vontade, seu estômago ruge de fome, mas ele sabe: para meninos como ele, um pão com mortadela é uma grande refeição. Só, com a face avermelhada pelo reflexo das luzes do farol, e bambo, encontra refúgio nos papelões que fez de colchão e cobertor, simultâneamente, e se encolhe na posição fetal, ainda que nunca saiba o que isso possa significar e passa a mão no cão sarnento que tem como amigo e filho e também em quem desconta a sua dor e fúria, euquanto, com a outra, leva um tubo de cola às narinas, para que o frio passe rápido.
Do 6° andar do prédio em frente, um estudante de sociologia o observa. Refletindo os abalos que o capitalismo causou na sociedade moderna, faz anotações num bloco de nota. Usa a miséria como exemplo da selvageria capitalista. Abandonando a janela, veste a camiseta, coloca o bloco e o lápis sobre a mesinha do telefone e desce apressadamente pela escada. Atravessa a rua, compra créditos para seu celular, passa pelo seu 'exemplo' a ser usado para a ênfase de sua prova de sociologia e sobe apressadamente as escadas, porque o frio é intenso.
Ele se acomoda no colchão e puxa o edredom até que este cubra suas orelhas. Arrepia-se com o colchão frio, mas que logo esquentará. respira fundo. Mais um dia que chega ao fim. As luzes apagadas. Pensamento positivo. Energia. Os pensamentos se conturbam. Realidade, sono, luz, trevas, pálpebras agitadas, escuridão. O pensamento viaja num túnel sem fim. Sonhos, lugares, pessoas. Frases tomam sua mente:
- Ainda que eu fale as línguas dos homens ... dos homens... dos homens...
- E a língua dos anjos... dos anjos... sem amor ... sem amor ...
- Nada disso valerá ... valerá ...
- E o corpo para ser queimado ... queimado ...
- Sem amor ... sem amor ... de nada vale ...
- O amor é ... o amor nada mais é ... do que ... DEUS!
Acorda suando frio, com uma sensação horrível, com o coração acelerado, com os olhos escancarados buscando enxergar a realidade no escuro. Relaxa quando percebe que sonhava. Estica as pernas por sob o cobertor. Boceja. Percebe tons de vermelho que gira no teto. Pensa. Olha para o vidro da janela. Os reflexos vem de fora. Curioso, levanta-se enrolado no cobertor e bocejando, caminha até o vitrô. Vê algumas viaturas. Um caminhão da perícia. Sangue na parede e nos papelões. Um menino foi fuzilado por algumas pessoas que fugiram num Opala preto. A polícia não sabe o porquê. O cão, foi encontrado entre os braços do menino, também fuzilado. Ao lado, duas sandálias, uma, com correias arrebentadas. Um rodinho improvisado, um saco de pão, uma garrafa de água mineral com cola. Ninguém na padaria sabe o nome do menino. Todos observam. Outros meninos pela rua também são encontrados mortos. Chacina. O corpinho é colocado no caminhão do IML, o braço despenca. No antebraço, com maquininhas feitas com agulha e tinta de caneta, movidas por um motorzinho de liquidificador, uma tatuagem: Deus é amor.
Poucos são os que sabem disso.

Aquele estudante tatuou em sí; Deus é amor e acrescentou (e justiça).
E, já não escreve teses. Com a faculdade trancada, trabalha todos os dias numa casa que dá apoio à crianças de rua.
Ele crê em Deus e no Amor. E somente quando arregaça as mangas, é que essa junção se transforma em Justiça. Palavra a qual ele se apoderou para colocar na lápide daquele desconhecido que na verdade, se chamava Bento. Assim mesmo, Bento.

Aqui jáz Bento. Menino das ruas para o mundo, que sabia que Deus é amor e, que agora, experimenta Deste.
Saudades do vizinho da frente.
Justiça seja a minha bandeira por toda a vida!
(Do GiTO - Foi escrito, e é algo bom!)