quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Varanda, Conversas e Saudade.

A saúde já não estava lá aquelas coisas. Tanta debilidade do corpo fazia externar cada vez mais fragilidade. Os dias haviam ficado menos agitados, sem tantas atividades. Passava a maior parte do tempo descansando deitado, fosse na rede, no sofá ou na cama.
O Neto, que o admirava desde a sua criancisse, o olhava com o coração temeroso só de imaginar sua partida, mas bem sabia que não tardaria em chegar. O avó demonstrava tantos sinais de que já quase não vivia aqui nesse mundo, mesmo estando por esses lados ainda. Era como se já estivesse com Deus, só esperando o corpo apagar de vez.
Nesse dia, estranhamente, o avó, porém, aparentava uma vitalidade não vista nos últimos dias. Tanto que foi capaz de sentar-se na cadeira na varanda. E lá estavam, enternecidos pela companhia um do outro, tomando caldo de cana moído na hora no sítio, e com uma bandeija de bolo de fubá, daqueles que formam uma casquinha crocante e tem uma farofa doce por cima, especialidade de sua velha senhora, tão companheira em todos esses anos.
Após um longo período de contemplação da paisagem, sem nada dizerem um ao outro, mas aconchegados na ternura dos olhares de ambos, cheios de sinceridade, o neto, enfim, pergunta:

- Vô chico, você tem medo de morrer?

- Eu não tenho, não. – disse o velho com voz mansa e embargada pela sua fragilidade.

- Mas todo mundo tem medo de morrer. Tanto que ninguém quer isso. Por que o senhor não tem?

- Ah, rapaz, depois de uma vida inteira dessas, a gente vai entendendo que a morte é só mais um acontecimento natural da nossa vida. Não se pensa em morte como MORTE. Apenas como qualquer coisa qualquer. Como é nascer, fazer aniversário, visitar um amigo, comer um bolo.Assim também é morrer. Um dia, a gente morre mesmo. Mas isso não é nada. É apenas um processo que temos que passar. Mas, a gente continua vivo lá com Deus, onde a gente jamais deixa de viver. É quase como se a morte nem acontecesse. Mas a gente tem que passar por ela pra chegar lá de vez.

- Ah, então ela é como um ônibus!

- (Risos)É, como um ônibus. Sem pegar ela, a gente não sai daqui, mesmo já estando lá bem antes de morrer. Na minha idade e doente como estou, eu tenho medo é de durar muito mais tempo aqui e...opa...Lá vem a sua avó. Não posso deixar que ela me veja assim. Senão vai descobrir que estou velho. rs

- (risos)Tenho uma notícia, vô: ela também está. Rs

- E continua bonitona, não é? Rs

- (risos) É, é sim.

Riram, como sempre costumam fazer quando estam juntos. Silêncio outra vez. Um pássaro cantou, o Sol andou alguns graus no céu, rumo ao entardecer. Permaneciam ali.

- A Dona Cristina, aquela mulher meio maluca da igreja, disse que não era justo que o senhor estivesse passando por isso. Que o senhor não deveria estar doente, pois sempre foi uma pessoa muito boa. Sempre ajudou os outros, foi honesto, e que não merecia nada disso agora. Ela disse que estava orando pra Deus curar o Senhor e que, como Deus é justo, ia ter que atender. Eu não soube o que dizer pra ela. rs

- (risos) Essa dona é maluca mesmo, meu filho. Esses dias ela apareceu aqui e falou a mesma coisa pra mim e pra sua avó. Mas tudo isso é besteira dela. Como pode ser injusto que um velho como eu sofra das doenças da velhice? Eu fui bom? Merecedor de que? De viver até aos 100 anos? Se fosse por justiça ou dignidade de alguma coisa, eu estava perdido. Eu e todo mundo aliás. Não há um que seja bom na terra inteira. Essa mulher não sabe o que diz. Rs Está ficando gagá, como o seu velho aqui. rs
Imagine só, orar pra que um velho não tenha as doenças de velhos. Que injustiça há nisso? É como orar pra que o sol não esquente ou ilumine o dia, que a água não refresque, que o vento não ventile ou que o bolo de fubá da sua avó não seja bom. rs. A gente, como gente, está sujeito a toda sorte de coisas possíveis de sobrevir a nós. Assim como as crianças estão sujeitas a cair e se ralarem inteiras, os velhos estão sujeitos às doenças da velhice. Imagine só. Eu vou lhe avisar, meu neto, você ainda verá essa mulher orando pra Deus lhe restituir os dentes da boca, porque ela achará injusto que uma velha fique banguela, tendo sido tão boa na vida. rs

- (risos) É vô. Daquela ali eu não duvido de nada, não. Rs

- Ah, de todos os espinhos da idade que me espetam na carne, a graça de Deus é o que me basta, meu filho. A graça. Eu quero é sossegar.

Uma pausa pra comer um pedaço de bolo e tomar um copo de garapa gelada com limão. Um suspiro fundo e:

- Vô, mesmo sabendo de tudo isso agora, quando o senhor for, se eu chorar, não vou estar sendo “maricas” por isso, vou? rs

- (risos) Não. Rs. Mas não lamente a minha morte, filho. Saiba que não deverá tardar em vir essa hora. Já estou cansado, fraco, em paz e pronto pra ir. O meu Senhor me espera lá em cima. Não há porque interromper o processo.

- É que eu sentirei saudades de você, vô.

- Eu também, Bruninho, meu neto. E esperarei ansioso por você lá no céu. Mas não me vá querer ir depressa, se não sua mãe me mata, mesmo eu estando já morto. Rs

Bruninho sorriu da piada do avô e o abraçou. Ficaram assim um bom tempo, juntos.
Na madrugada, um anjo veio visitar o Seu Chico. É que ele tinha um encontro com o Homem com quem vinha conversando há alguns dias e o anjo iria consuzi-lo até lá. Quando encontrou o homem, a sensação foi a mais indescritível. Uma mistura de paz e euforia, saudade seguida de presença preenchida, sossego e descanso, e uma forte impressão de que já estivera ali, de alguma forma. Na manhã seguinte, os familiares e amigos chegados foram avisados do ocorrido. Bruninho, porém, não ficou surpreso. Sabia que o ônibus havia passado e seu avô embarcou. Sentiu apenas escorrer pelo rosto uma lágrima. Não se sentiu “maricas”, apenas cheio de saudade.


Isabela Pizani.